Gersony Silva
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Textos Críticos

Entrelaços

A primeira mostra individual de Gersony Silva em Lisboa acontece na Galeria Colorida.
Para esta mostra a artista selecionou de forma apurada séries específicas de sua recente pintura e objetos sob o título “Entre laços” - este termo surge pela representação estética das pinturas interligadas pelo objeto “laço”, também denominado fita vista como um fio condutor, além de que o termo “laço” por si só expressa uma ligação entre vários elementos de um certo contexto. Ao extrapolar o contexto estético e gramatical podemos ainda expandir o universo desta mostra para o “laço” existente entre Portugal e Brasil, pelo elo político que acompanha a existência de ambos os Países desde o ano de 1500.
Gersony Silva antes de se restringir a questões políticas ou termos gramaticais, foca sua obra em elementos pictóricos precisos – uma seleção aguçada de cores, a criação de um movimento em série, jogo entre o claro e o escuro, sobreposição de camadas.
Estas últimas características remetem a artifícios barrocos a criar em cada uma das telas uma certa profundidade, revelada por camadas prestes a se soltarem do suporte artístico. Sua pintura composta de poucos elementos não chega à abstração pura. Claramente se observa tanto nas séries “Dobras em Vermelho” como “Dobras em Azul” uma superfície superior em tons monocromáticos de vermelho ou azul a resguardarem uma primeira camada imersa em tom escuro em alusão à cor negra.
A escolha das cores primáris azul e vermelho reforçam ainda mais o contraste entre cores frias e quentes, além de sua própria simbologia. O azul é tido por muitas culturas como uma cor sagrada ligada à eternidade e ao infinito tanto do céu quanto da água profunda. Apesar de ambas cores serem contrastantes o vermelho também carrega em si poderes mágicos por referir-se à vida, ao sangue e à fertilidade e consequentemente à vida eterna. Já a cor negra que se revela discretamente na parte superior das pinturas seria uma alusão ao caos, ao vazio ou mesmo à morte.
Gersony porém encobre este contexto obscuro com suas vivas camadas monocromáticas com um caimento semelhante ao de um manto, o qual acolhe e envolve de forma protetora a obra criada.
Apesar de cada uma das telas serem obras individuais, elas dialogam em série criando um rítmo sutil, semelhante a cenas de um filme. Porém é certo que as imagens produzidas por um cineasta e as obras produzidas por um artista diferem principalmente na forma como o autor atua . Como a pintura é um original, ela passa a se multiplicar ou dar continuidade à sua “idéia” através das leves nuâncias existentes em cada tela do conjunto. Gersony enfatiza, desta forma seu percurso introspectivo através do movimento pensado, repensado e amadurecido sem se desgastar em um único gesto. Esta maturidade foi alcançada através da execução de obras precursoras como as séries “Objetos Fendidos – Movimento em Azul” e “Objetos Fendidos – Movimento em Vermelho” de 2007, objetos feitos de espuma maleável em tons monocromáticos mantidos em molduras profundas como em um reliquiário. Estes objetos remetem plenamen-te à pintura atual de Gersony: a escolha cromática, o gesto pictórico, a criação da perspectiva, o jogo entre camadas internas e externas ... Enfim, podemos dizer que a pintura de Gersony é em si uma réplica destes objetos nos provando o domínio pictórico da artista.
Os valores estéticos cultuados por Gersony e seu desprendimento artístico, proveniente de uma abrangente liberdade de expressão, fazem com que ela transite por suportes distintos na representação de seu universo. A arte contemporânea permite, sem limites, o trânsito livre do artista fazendo uso simultâneo de técnicas e materiais diversificados.
Desta forma a artista se supera ao expandir a série dos “Objetos Fendidos” para o campo escultural. Surge na mesma época “O outro lado – Objeto Arte” – uma reprodução monumental dos “Objetos Fendidos” a se desdobrar pelo espaço, livre e cultuando a ausência de um suporte convencional, agindo como uma escultura autônoma. Os recursos utilizados para sua criação, são limitados conscientemente a poucos materiais como a usual espuma maleável, fortalecida pela utilização de placas de espelho como suporte a ampliar a magnitude das curvas, entranhas e formas criadas. A correspondência estética com as demais obras aqui citadas é visível.
O pensar estético de Gersony habita suas criações simultaneamente em plena correspondência. O pensador alemão Reinhard Knodt defende a idéia de que a correspondência estética pode ser silenciosa. Sua voz está na relação entre os elementos que a compõem – sejam eles a natureza, beleza natural ou demais referências e semelhanças, os quais indicam qual a intenção principal no contexto da correspondência estética.
“O Outro Lado – Objeto Arte” remete, além do caráter de objeto e instalação, e faz alusão a uma construção arquitetônica a ser habitada e vivenciada. Suas formas flexíveis e aconchegantes relembram as pinturas “Dobras em vemelho” e “Dobras em Azul”, cujas bordas da superfície superior se desenrolam expondo o interior das mesmas. Este movimento aqui mencionado, lembra o estilo plástico arquitetônico cultuado a partir da década de 20 do século passado: as novas tendências internacionais da época deixavam de lado o racionalismo representado por cubos, passando a substituí-los por formas plásticas internas e externas, repletas de movimento, dando-lhes o rótulo de construções neo-expressionistas.
Um exemplo a ser citado é a igreja Notre Dame du Haut construída por Le Corbusier entre 1950-55.
A obra “Qual é a sua onda” é uma instalação interativa da qual os visitantes participam recompondo desenhos com o uso de fita de velcro. Novamente é um material maleável e de azul monocromático utilizado como ponto de partida para um jogo de diálogos infinitos e únicos. A composição cria um painel, o qual à primeira vista relembra uma ortografia obscura, revelando ser simplesmente um relevo em processo de criação como um mosaico. Esta obra poderia se chamar “Diálogo com Athos Bulção” como uma homenagem a este artista também chamado de “artista de Brasília”, o qual concebeu inúmeros murais, mosaicos e vitrais para Brasília feitos para o convívio com a população da nova capital brasileira ainda na fase de sua concepção.
A humanidade vive da concretização da utopia e da criação do “Novo”, pensado por artistas irriquietos e incansáveis a expandir constantemente seus limites: “ E é precisamente essa sucessão de batalhas e de gerações que empresta ao fenômeno artístico a marca de sua continuidade através de todas as épocas da história, como para atestar que o homem consegue sempre dar de si o testemunho de sua grandeza, mesmo nas contingências mais dolorosas de sua passagem pela terra”.
TEREZA DE ARRUDA
Curadora/Curator - Berlim, setembro 2009